28.9.05

Sensodyne

Depois do almoço, a televisão ligada engole os últimos momentos de folga. Um pequeno intervalo antes do segundo tempo da segunda-feira. Ele assiste ao jornal enquanto ela, no banheiro, assiste aos dentes cada vez mais amarelos, aparecendo por trás do branco da espuma da pasta. Quanto será que custa um clareamento a laser?

A porta aberta deixa passar os sons das notícias do meio-dia. Altos e baixos da bolsa de valores; uma nova pesquisa sobre a educação brasileira; escândalos no governo; um prédio que desaba em alguma cidade pobre.

Ele seleciona as notícias para comentar com ela. Não sabe porque, mas acha que o desbamento pode interessá-la. Grita para alcançá-la no banheiro:

- Caiu um prédio.

Sentindo o dever de dar continuidade ao processo de comunicação, tão recomendada para a sobrevivência dos relacionamentos, ela interage:

- Onde foi?

- Em (...), ele responde.

A água está gelada e os dentes de trás doem quando enxágua a boca. Pensa que não deveria ter economizado na pasta de dentes. Será que aquela Sensodyne resolve mesmo? Olhando a água escorrer pelo ralo, misturada aos restos de espuma raiados de sangue, pensa que existem coisas mais importantes para se preocupar na vida. Acha que deve ficar chocada com a notícia do desabamento.

- Morreu alguém?

- Umas 10 pessoas.

A tragédia deveria comovê-la, mas não consegue sentir nada. Apenas um resquício da sensibilidade causada pela água gelada nos molares obturados. Tenta a indignação, mas mesmo esse sentimento mais distante, racional, parece amortecido. Desiste de buscar emoções que não existem e volta-se para suas pequenas tragédias. Atrasada, de volta. Chega na sala, o noticiário está no fim. A última matéria fala sobre a mais nova exposição de um artista conhecido e termina com um belo e frio sorriso da apresentadora.

Dentes brancos, ela pensa. Batom bom, não escorre. Será que a jornalista sente dor quando toma água gelada? Será que ela já fez canal? Será que usa Sensodyne?

Os caracteres sobem e a apresentadora volta o rosto para seu colega de noticiário. O sorriso agora transmite calor, alívio, orgulho e uma ponta de desprezo. Seria pelo artista incompreensível da última notícia ou pelos telespectadores voyeurs que ela sabe ainda estarem observando seus últimos movimentos?

- Imaginando a apresentadora com dentes cariados e um coração de gelo, ela sente-se menos culpada e retorna aos seus problemas. Atrasada, de novo. De noite vou passar na farmácia e comprar uma Sensodyne. Sorrindo íntima e orgulhosamente do trocadilho que acaba de lhe ocorrer, anota mentalmente a frase de efeito para alimentar o flerte com o colega de escritório: sou uma mulher sensível até os dentes.

22.9.05

A nova praia dos cariocas

Os cariocas têm um prazer especial em fazer pouco dos hábitos de lazer dos paulistanos. Uma das piadas recorrentes é encher a boca para dizer que praia de paulista é shopping center. Pois bem, parece que o mito caiu por terra.

Notícia no Blue Bus, que por sua vez faz referência à nota na coluna Gente Boa, d´O Globo, diz que os cariocas são chegados a um bate-perna pelos corredores de vitrines. Uma pesquisa encomendada pela Associaçao Brasileira de Shopping Centers mostra que 64% dos habitantes da Cidade Maravilhosa vão pelo menos uma vez por semana a um shopping. Em São Paulo, o índice é de 59%.

Pelo jeito, o sol, a praia e o boteco estão em disputa acirrada com o ar fresquinho e o fast food no lazer do carioca...

21.9.05

Que lindo dia cinza (em João Pessoa)!

Trechos de um blog de janeiro de 2001, postados por uma curitibana em seus primeiros dias de João Pessoa.

Adoro sol, mas foi muito bom ver esse dia cinza, essa chuvinha fina caindo sem parar. O mar também estava cinza, cheio, meio rebelde, apesar de a chuva não ser forte. Só que o calor não diminui, até aumenta, porque não venta muito quando o tempo está assim.

(...)

O forte do verão aqui é em fevereiro, e aí as coisas mudaram. Ficou muito mais quente, parece que o vento diminuiu, a gente pensa umas três vezes antes de sair de casa. Comecei a entender a arquitetura dos prédios. No nosso apartamento as janelas são pequenas, e as portas-janelas, das varandas, são bem recuadas. Assim, nunca entra sol diretamente no apartamento. Ficamos numa agradável penumbra, e percebi que, se fosse diferente, com sol batendo direto nos aposentos, seria um inferno! Mas no começo estranhei, e xinguei um monte o arquiteto que tinha projetado o prédio porque quase não tínhamos luz direta. Por isso, se alguém aí do sul quiser se aventurar por essas bandas de cá, não vá atrás de apartamentos ensolarados como fazemos em Curitiba! Ah! E prefira os imóveis com as janelas de frente para o mar ou para o sul, que com o vento que sopra nem há necessidade de ar condicionado.

(...)

Nessas idas e vindas, do frio para o quente e vice-versa, eu fiquei com rinite. E depois fiquei com gripe. E agora estou com dor de garganta. Toda essa ladainha é para explicar porque estou tão feliz com esse dia nublado e chuvoso. Quando estamos doentes, queremos que o mundo também fique mais melancólico e solidário com nosso estado de espírito. Assim, o dia foi perfeito. Entre um livro, um filme e uma revista, olhava pela janela e só via o cinza, o que me confortou bastante. Foi muito melhor do que ver o céu azul e o sol ardente, que chamam a gente para a atividade, coisa que hoje não seria possível.

Diretor de Texto

Se existe Diretor de Arte, por que nós, redatores, não podemos ser chamados de Diretores de Texto?

Deve ser porque a gente usa o Word como ferramenta, e eles trabalham com programas mais difíceis de dominar, como Illustrator, Photoshop, Corel Draw.

Word, até o cliente usa. Também deve ser por isso que alguns já mandam o texto pronto. Afinal, bater no teclado, qualquer um faz, né?