19.3.07

Falta

- Deus sabe o que faz.

Havia mais de conformação do que certeza na enunciação da mulher.

O marido tinha morrido há duas semanas. Ela recebia a visita da cunhada e outros parentes mais jovens. A esposa do seu irmão também era viúva. Consolava a mais recente com a sabedoria e altivez de quem já passou por isso e sabe todos os caminhos, da perplexidade à falta, da depressão à aceitação, da confusão à solidão.

- O que não pode é você ficar em casa. Tem que sair, se distrair, disse à neófita.

- É. Tem, né? A gente fazia tudo junto.

Os mais jovens ouvem os relatos da morte e a retórica natural desse tipo de conversa. Palavras de ânimo, constatações, clichês indispensáveis para os momentos em que não se sabe o que falar. Tentam alcançar o momento, mas talvez ainda não tenham convivido o sufiente com a morte para contribuir. Na voz deles, as palavras de consolo são vazias, sem a cor do sentimento experimentado.

A senhora é alta, grisalha, muito digna. Sofre em silêncio, fala do morto como se ele estivesse no hospital, convalescendo. Uma dor menor, um estar perdida temporário, talvez porque ainda não caiu a ficha direito.

- Ele estava tão bem, ninguém podia imaginar. De manhã ele foi na obra da filha. Depois passou no sapateiro comprar cola. A latinha que arremata o carpê estava soltando, sabe? Então ele chegou em casa, colou a latinha e almoçou. Depois ele sentou no sofá e colocou a mão do ouvido. Se torceu um pouco, disse que tava com dor e pediu para ir na cama. Eu levei ele. Ele se encolheu mais uma vez e fez um barulho, um ronco. O rosto ficou todo preto e ele morreu.

As pessoas imaginam a cena em silêncio. Começam os murmúrios retóricos novamente. Morreu rápido. Estava em paz. Uma felicidade morrer assim, em casa, sem ficar doente. Ela concorda, aceita, tenta entender.

- A gente fazia tudo junto. Naquele dia mesmo a gente ia sair. Ele podia ter tido aquilo na rua, ter batido o carro. Deus sabe o que faz.

Nenhum comentário: